Pesquisadores da USP têm amostras de moluscos e conchas da Gâmbia apreendidas e incineradas

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Pesquisadores brasileiros viram acabar incineradas amostras de moluscos e conchas que haviam coletado na Gâmbia. O material teve esse fim após ser apreendido no Aeroporto Internacional de São Paulo, em Guarulhos, no dia 19 do mês ado, pelo Ministério da Agricultura e Pecuária (Mapa). O episódio gerou críticas de cientistas, que pedem mudanças de regras para a importação de materiais de origem animal.

Procurada pela reportagem na última terça-feira (4), a assessoria do ministério do governo Lula (PT) não se manifestou até a publicação desta reportagem.

Chefiada pelo professor Luiz Ricardo Lopes de Simone, do Museu de Zoologia da USP, a expedição científica ao país africano durou mais de duas semanas. O objetivo foi coletar amostras biológicas para três projetos de pesquisa, quatro teses de doutorado e cinco artigos científicos.

A bagagem de quase 30 quilos com o material também serviria para parcerias com outras instituições do país, como Universidade Federal do Paraná (UFPR) e Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), e de fora, como Harvard, nos EUA, e Universidade de Helsinque, na Finlândia.

Segundo o pesquisador, o custo da viagem foi estimado em R$ 120 mil. A expedição foi financiada com recursos do museu, da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) e do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).

O professor e mais dois alunos de pós-graduação desembarcaram no aeroporto em Guarulhos às 18h de 19 de maio. Eles foram barrados na triagem. Agentes da Receita Federal retiraram as amostras das embalagens e acionaram o Ibama (Instituto Brasileiro de Meio Ambiente), que liberou o material com a condição de que os pesquisadores escrevessem um relatório detalhando as espécies coletadas. O instituto confirmou à reportagem ter feito essa solicitação.

Antes da liberação, porém, fiscais do Mapa também foram acionados e decidiram reter o material. No termo de fiscalização de bagagem carimbado pelo ministério, consta que os pesquisadores não apresentaram licenças prévias do Mapa e do Ibama, ou certificação sanitária.

Simone diz que os dois documentos não são necessários para importação de materiais categorizados com fins científicos e sem risco significativo, conforme a instrução normativa interministerial 32/2013 do Mapa. Essa regra, segundo ele, é a mais importante para importação de materiais de origem animal.

Em uma carta dos pesquisadores endereçada a sociedades científicas, eles afirmam que tinham licença do Ibama. Simone reconhece que faltou o aviso de chegada do material, que deve ser feito ao Serviço de Vigilância Agropecuária Internacional com antecedência mínima de 48 horas. Ele diz que, mesmo assim, não era necessário destruir as amostras.

A equipe de pesquisa conseguiu evitar a incineração imediata do material. Após arem seis horas no aeroporto, o professor diz que ficou acertado que o material permaneceria no local, enquanto os pesquisadores buscariam regularizar as amostras.

Simone afirma que acordou cedo no dia seguinte para ir à sede do Serviço de Fiscalização de Insumos e Sanidade Animal (Sisa-SP), ligado ao ministério. Mas, segundo ele, quando a fiscal que o atendeu no local teria feito uma ligação para liberar o material, descobriu que tudo já havia sido incinerado. Uma vez fora das embalagens, os moluscos haviam começado a apresentar mau cheiro.

O Ibama disse à Folha que não foi o instituto que efetuou a incineração.

De acordo com Simone, as amostras de moluscos precisam ser armazenadas em álcool para permanecerem conservadas. Como existe restrição de transporte de álcool em avião, os moluscos são levados apenas úmidos do líquido e ficam em diversos sacos herméticos para reduzir a velocidade da evaporação. Uma vez fora das embalagens, esse processo se acelerou.

Na avaliação do pesquisador, a apreensão e incineração das amostras foi arbitrária e que, exceto pelo aviso, os documentos estavam em ordem.

Reação de pesquisadores

O professor diz que a sensação é “como se tivesse perdido um membro da família”. “Não consigo nem dormir, estou muito abalado. Fecho os olhos e eu só vejo o meu material queimando”, afirma ele, lembrando o esforço empreendido para pegar o material, o que incluiu entrar na lama na Gâmbia e uma viagem de volta de 20 horas dentro do avião.

Por meio das amostras, seria possível estudar a biodiversidade de espécies. Os cientistas queriam analisar quanto moluscos da costa africana e da brasileira se diferenciaram ao longo do tempo, já que as duas eram unidas no ado.

Nesta semana, o Museu de Ciências Naturais da Pontifícia Universidade Católica de Minas (PUC-MG) publicou uma carta em que lamenta “a falta de preparo e de diálogo entre os órgãos responsáveis pela fiscalização, o que gerou insegurança jurídica e prejuízo direto ao trabalho científico sério e comprometido”.

A instituição pediu a revisão de procedimentos “legais e operacionais para garantir segurança e respeito à atividade científica no Brasil”.

A bióloga Lenita de Freitas Tallarico, presidente da Sociedade Brasileira de Malacologia, manifestou-se em um vídeo no Facebook. Nele, pediu responsabilização dos envolvidos e revisão imediata dos protocolos de fiscalização. “A ciência brasileira não pode ser tratada como um crime.”

O que diz a lei?

Gabrielle Brüggemann Schadrack, especialista em direito aduaneiro e que atua no escritório Menezes Niebuhr, diz que a isenção de documentos prevista na INI 32/2013 tem alguns condicionantes. Por exemplo, é preciso que o pesquisador se declare responsável pelo material importado e que ele seja vinculado a uma instituição já cadastrada na Divisão de Defesa Agropecuária da Superintendência Federal de Agricultura, Pecuária e Abastecimento.

A advogada afirma que cada importação é um universo diferente. Mas, via de regra, quando ela não corresponde a todos os requisitos, o produto fica apreendido, e o indivíduo tem um período para regularizar o material.

Se o prazo não for cumprido, pode haver a incineração ou devolução ao país de origem. Antes disso, porém, o importador costuma receber uma notificação. Quando o produto é mais sensível e pode representar um risco, a autoridade pode destruir o material o quanto antes. “Mas claro que dentro de um processo legal em que o importador também tem a chance de se manifestar, exceto se não depender de uma manifestação do importador para esclarecimentos e o próprio produto falar por si”, diz a advogada.

Na avaliação de Schadrack, a complexidade de regras e uma legislação dispersa de importações resulta em erros dos importadores e da fiscalização.

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